Scan barcode
A review by katya_m
Os Trabalhos de Hércules by Agatha Christie, John Almeida
"Veja-se por exemplo este Hércules - este herói! Herói, deveras! O que era ele senão uma grande criatura musculada de pouca inteligência e tendências criminosas? Poirot lembrou-se de um tal Adolfe Durand, um talhante, que fora julgado em Lyon em 1895 - uma criatura forte como um touro que matara seis crianças.(...)Não. Poirot abanou a cabeça, se era essa a ideia que os antigos Gregos tinham de um herói, então, de acordo com os padrões modernos, não serviria, certamente. Todo o padrão clássico o chocara. Estes deuses e deusas - pareciam ter tantos nomes falsos como um criminoso moderno. Na verdade. pareciam ser absolutamente do tipo criminoso. Bebida, devassidão, incesto, violação, saque, homicídio e chicanice - o suficiente para manter um juge d'Instruction constantemente ocupado.
(...)
Contemplou o seu reflexo no vidro. Aqui, então, estava um Hercules moderno - muito distinto daquele esboço desagradável de uma figura nua com músculos salientes, brandindo uma clava. Em vez disso, uma figura pequena e compacta, vestida com as roupas urbanas correctas, com um bigode - um bigode como Hércules nunca sonhara em cultivar - um bigode magnífico e sofisticado."
14
Agatha Christie propôs-se um desafio interessante com estes contos: encontrar o equivalente metafórico para cada um dos doze trabalhos de Hércules. E se alguns dos equivalentes encontrados são rebuscados, outros há que são bem interessantes. Por exemplo: em A Hidra de Lerna, para o equivalente para o extermínio da grande hidra (de sete a cem cabeças, consoante uns ou outros dos autores antigos), Poirot terá a difícil missão de silenciar a calúnia que se multiplica; ou em O Gado de Gerião, para a tarefa de recuperar o gado tresmalhado imposta a Hércules, Poirot terá de salvar um rebanho de crentes ingénuos de uma seita religiosa.
"-Ele precisa das vossas preces.
-Então ele é um homem infeliz?
Poirot disse:
-Tão infeliz que se esqueceu do que significa a felicidade. Tão infeliz que não sabe que é infeliz.
A freira disse suavemente:
-Ah, um homem rico..."
246
In As maçãs das Hispérides
Não deixa de ser interessante que Agatha Christie faça do seu Poirot um homem pouco interessado nos clássicos (Pasmem-se! Com esta não contava eu) e dessa forma acabe a desculpar algumas das suas próprias imprecisões - ou melhor das suas pesquisas e escolhas.
Porque os autores não são unânimes (a mitologia nunca o é) na hora de ordenar os trabalhos. Uns seguem uma via outros outra. E eu teria todo o interesse em espreitar as leituras da autora quando impõe uma determinada ordem aos seus Trabalhos.
Assim, ao longo do livro, Agatha Christie reverte por duas vezes a ordem das tarefas desempenhadas por Hércules, e, consequentemente, por Hercule Poirot. Nomeadamente, o terceiro e quarto trabalhos (O Javali de Erimanto e A Corça de Arcádia - na coletânea com a ordem oposta) com o propósito de dar seguimento geográfico aos contos.
Mas, o mais interessante, é perceber que, no final da coletânea (com A Captura de Cérebro e As Maçãs das Hispérides), a autora torna a inverter a ordem das tarefas, e sem razão de ordem criativa aparente. Atendendo às anotações em [b:Os Cadernos Secretos de Agatha Christie|10712850|Os Cadernos Secretos de Agatha Christie|John Curran|https://i.gr-assets.com/images/S/compressed.photo.goodreads.com/books/1299456593l/10712850._SY75_.jpg|6725660], assumo que a recusa para publicação na The Strand do conto A Captura de cérebro, cuja versão original - de conteúdo altamente político e metafórico (onde o retrato de Hitler é uma presença constante como "ditador dos ditadores [...] uma cabeça em forma de bala e bigodinho preto") - tenha sido a causa responsável pela inversão da ordem dos dois últimos trabalhos que foram publicados pela primeira vez em número de onze, e apenas posteriormente acrescentados de um conto (numa versão complemente distinta da original). A proximidade com os tempos então atuais é deveras assustadora e poderá, como afirma Curran, estar na origem da dita recusa por ser considerada um desvio da literatura de entretenimento.
Todavia, atendendo às investigações que Christie poderá ter feito para se familiarizar com o mito, a explicação pode ser outra completamente, e provir apenas das fontes que tinha ao seu dispor.
Posto isto, estes contos são, no todo, um conjunto animadinho de histórias. Funcionam enquanto conjunto, mas deixam um pouco a desejar no que a literatura policial diz respeito - como, aliás, quaisquer contos que já tenha lido do género, sejam ou não da autoria de Christie. Há apenas um tanto que é permitido fazer no espaço de dez páginas, e uma investigação que se preze não entra para a lista de possíveis. Ainda assim, Christie consegue criar alguns personagens memoráveis, sugerir enredos interessantes (alguns dos quais veio depois a trabalhar com maior rigor nos seus romances - como O Enigma do Sapato ou O Mistério do Expresso do Oriente) e recuperar a eterna Condessa Russakov no último conto.
Uma boa maneira de entrar no género, parece-me, mas pouco impressionante para quem conhece melhor da Rainha do Crime.
"Hercule Poirot, balançando para trás e para a frente na carruagem do metro, atirado ora contra um corpo, ora contra outro, pensou para si que havia demasiadas pessoas no mundo![...] A humanidade vista assim en masse não era atraente."
247
O LEÃO DE NEMEIA
⭐⭐⭐⭐⭐
A HIDRA DE LERNA
⭐⭐⭐⭐
A CORÇA DE ARCÁDIA
⭐⭐⭐⭐
O JAVALI DE ERIMANTO
⭐⭐⭐⭐
OS ESTÁBULOS DE AUGIAS
⭐⭐⭐
AS AVES DE ESTINFALIA
⭐⭐⭐⭐
O TOURO DE CRETA
⭐⭐⭐⭐
AS ÉGUAS DE DIOMEDES
⭐⭐⭐
O CINTURÃO DE HIPÓLITA
⭐⭐⭐⭐
O GADO DE GERIÃO
⭐⭐⭐⭐⭐
AS MAÇÃS DAS HISPÉRIDES
⭐⭐⭐
A CAPTURA DE CÉREBRO
⭐⭐⭐
(...)
Contemplou o seu reflexo no vidro. Aqui, então, estava um Hercules moderno - muito distinto daquele esboço desagradável de uma figura nua com músculos salientes, brandindo uma clava. Em vez disso, uma figura pequena e compacta, vestida com as roupas urbanas correctas, com um bigode - um bigode como Hércules nunca sonhara em cultivar - um bigode magnífico e sofisticado."
14
Agatha Christie propôs-se um desafio interessante com estes contos: encontrar o equivalente metafórico para cada um dos doze trabalhos de Hércules. E se alguns dos equivalentes encontrados são rebuscados, outros há que são bem interessantes. Por exemplo: em A Hidra de Lerna, para o equivalente para o extermínio da grande hidra (de sete a cem cabeças, consoante uns ou outros dos autores antigos), Poirot terá a difícil missão de silenciar a calúnia que se multiplica; ou em O Gado de Gerião, para a tarefa de recuperar o gado tresmalhado imposta a Hércules, Poirot terá de salvar um rebanho de crentes ingénuos de uma seita religiosa.
"-Ele precisa das vossas preces.
-Então ele é um homem infeliz?
Poirot disse:
-Tão infeliz que se esqueceu do que significa a felicidade. Tão infeliz que não sabe que é infeliz.
A freira disse suavemente:
-Ah, um homem rico..."
246
In As maçãs das Hispérides
Não deixa de ser interessante que Agatha Christie faça do seu Poirot um homem pouco interessado nos clássicos (Pasmem-se! Com esta não contava eu) e dessa forma acabe a desculpar algumas das suas próprias imprecisões - ou melhor das suas pesquisas e escolhas.
Porque os autores não são unânimes (a mitologia nunca o é) na hora de ordenar os trabalhos. Uns seguem uma via outros outra. E eu teria todo o interesse em espreitar as leituras da autora quando impõe uma determinada ordem aos seus Trabalhos.
Assim, ao longo do livro, Agatha Christie reverte por duas vezes a ordem das tarefas desempenhadas por Hércules, e, consequentemente, por Hercule Poirot. Nomeadamente, o terceiro e quarto trabalhos (O Javali de Erimanto e A Corça de Arcádia - na coletânea com a ordem oposta) com o propósito de dar seguimento geográfico aos contos.
Mas, o mais interessante, é perceber que, no final da coletânea (com A Captura de Cérebro e As Maçãs das Hispérides), a autora torna a inverter a ordem das tarefas, e sem razão de ordem criativa aparente. Atendendo às anotações em [b:Os Cadernos Secretos de Agatha Christie|10712850|Os Cadernos Secretos de Agatha Christie|John Curran|https://i.gr-assets.com/images/S/compressed.photo.goodreads.com/books/1299456593l/10712850._SY75_.jpg|6725660], assumo que a recusa para publicação na The Strand do conto A Captura de cérebro, cuja versão original - de conteúdo altamente político e metafórico (onde o retrato de Hitler é uma presença constante como "ditador dos ditadores [...] uma cabeça em forma de bala e bigodinho preto") - tenha sido a causa responsável pela inversão da ordem dos dois últimos trabalhos que foram publicados pela primeira vez em número de onze, e apenas posteriormente acrescentados de um conto (numa versão complemente distinta da original). A proximidade com os tempos então atuais é deveras assustadora e poderá, como afirma Curran, estar na origem da dita recusa por ser considerada um desvio da literatura de entretenimento.
Todavia, atendendo às investigações que Christie poderá ter feito para se familiarizar com o mito, a explicação pode ser outra completamente, e provir apenas das fontes que tinha ao seu dispor.
Posto isto, estes contos são, no todo, um conjunto animadinho de histórias. Funcionam enquanto conjunto, mas deixam um pouco a desejar no que a literatura policial diz respeito - como, aliás, quaisquer contos que já tenha lido do género, sejam ou não da autoria de Christie. Há apenas um tanto que é permitido fazer no espaço de dez páginas, e uma investigação que se preze não entra para a lista de possíveis. Ainda assim, Christie consegue criar alguns personagens memoráveis, sugerir enredos interessantes (alguns dos quais veio depois a trabalhar com maior rigor nos seus romances - como O Enigma do Sapato ou O Mistério do Expresso do Oriente) e recuperar a eterna Condessa Russakov no último conto.
Uma boa maneira de entrar no género, parece-me, mas pouco impressionante para quem conhece melhor da Rainha do Crime.
"Hercule Poirot, balançando para trás e para a frente na carruagem do metro, atirado ora contra um corpo, ora contra outro, pensou para si que havia demasiadas pessoas no mundo![...] A humanidade vista assim en masse não era atraente."
247
O LEÃO DE NEMEIA
⭐⭐⭐⭐⭐
A HIDRA DE LERNA
⭐⭐⭐⭐
A CORÇA DE ARCÁDIA
⭐⭐⭐⭐
O JAVALI DE ERIMANTO
⭐⭐⭐⭐
OS ESTÁBULOS DE AUGIAS
⭐⭐⭐
AS AVES DE ESTINFALIA
⭐⭐⭐⭐
O TOURO DE CRETA
⭐⭐⭐⭐
AS ÉGUAS DE DIOMEDES
⭐⭐⭐
O CINTURÃO DE HIPÓLITA
⭐⭐⭐⭐
O GADO DE GERIÃO
⭐⭐⭐⭐⭐
AS MAÇÃS DAS HISPÉRIDES
⭐⭐⭐
A CAPTURA DE CÉREBRO
⭐⭐⭐